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Cinescópio Oito- Setembro\Outubro de 2017

São Bernardo - domingo dia 22.10 às 19 horas - ENTRADA E LIVRE - TRIBUNA LIVRE CULTURAL

1.

                         por

                              Bárbara Daniel (versão completa)

                             

 

        

 

 

 

 

 

 

 

      

 

 

 

“A Arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar nervosos”

 

(Susan Sontag, Contra a interpretação. LP&M, 1987)

 

Desconheço o que possa ser Arte verdadeira a que Susan Sontag se refere nesta imponderável afirmação, mas lembro-me que após assistir pela primeira vez a São Bernardo tive a ligeira impressão que talvez pudesse ter visto algo assim, que me deixasse nervosa e impressionada diante de um desconhecido vasto, maior do que eu.

O rosto de uma mulher, uma paisagem. Branca, jovem, cis, cabelos lisos e escuros, corpo magro, quase neurastênico, um olhar entristecido, que olha pra dentro, em seu vestido, quase sempre vermelho. A voz de Caetano Veloso, mixada em 4 canais sobrepostos, inspirada nos ruídos dos carro de boi dá o tom da cena. Uma mulher sofre com o ciúme perturbador do marido, depois de ter suas gavetas e livros vasculhados a procura de alguma prova que confirmasse a suposta traição, com a cabeça encostada na parede, dá alguns passos e é do seu olhar que não me esqueço.

A câmera na mão, rara no filme, se movimenta lentamente e acompanha Madalena em um plano fechado. Interior, dia, ela de pé, triste e melancólica. Com o olhar perdido em um desespero silencioso/silenciado, ela caminha vagarosamente pela casa e sua cabeça não desgruda da parede. Ela, sua silhueta na penumbra, arrasta seu corpo e a cabeça passa por todas as paredes, corredor, quarto. Não vai pelo meio do corredor. Precisa das paredes com quem embaixo da água procura ar. Um olhar que já pude ver nos olhos de tantas mulheres, um olhar possível de se imaginar: uma mulher triste que procura as paredes da casa para se sustentar.

É uma sequencia rápida que não tarda 20 segundos de duração e funciona como ponto de virada no filme. Madalena tinha 27 anos quando se casou e depois de dois anos casados Paulo Honório começou a sentir ciúmes. Ela era professora, ganhava um ordenado de 180 mil réis para ensinar o beabáe depois do pedido de casamento ter sido feito em uma semana já estava com seu vestido branco na igreja. Gostava de conversar com os funcionários da fazenda São Bernardo, se importava com eles, talvez fosse uma materialista histórica.

Madalena escreve uma carta que o vento leva uma das páginas para o gramado, onde Paulo Honório encontra uma folha, sem remetente. Entende algumas palavras e não entende muitos palavrões. Encontra Madalena, que não sabe rezar saindo da igreja e vai ter com ela. Está escuro e eles estão a beira do altar iluminados por uma vela. Ele lhe pergunta. Ela, responde “Ainda?”

Os Pau d’arco anunciam a tragédia. Ela diz frases aparentemente sem nexo: “Hoje pela manhã já havia na mata alguns paus-d’arco com flores. Contei uns quatro. Daqui a uma semana estão lindos. É pena que as flores caiam tão depressa.”E se suicida. Pau D’arco é uma espécie de ipê que durante o ano fica florido por apenas um 1 mês.

 

Paulo Honório nunca bateu em Madalena, mas na sua loucura obsessiva, seus ciúmes desmedidos e personalidade obstinada realiza uma violência psicológica, verbal e cotidiana que leva Madalena a sucumbir. Nada muito diferente do que noticiamos hoje nas redes sociais e avenidas contemporâneas.

 

 

Baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos publicado em 1934, São Bernardo, dirigido por Leon Hirszman e lançado em 1972 é um filme preciso, contido, austero. Planos longos, câmera fixa, planos gerais bem decupados com jogos de luz e movimentação dos personagens dentro de quadro. Não há beijos, os personagens mal se tocam, não trocam carícias.

 

O filme é narrado em primeira pessoa por Paulo Honório, que nos conta a história da sua vida. Homem agreste que prospera na vida sozinho, pela força bruta e auto-determinação. Mata, manda matar, surra, explora seus empregados a quem chama de molambos. Torna-se latifundiário, proprietário da fazenda São Bernardo, conversa sobre política e é avesso ao comunismo. Aos 40 anos decide escolher para si uma companheira e Madalena entra na história. Interpretados por Othon Bastos e Isabel Ribeiro, suas interpretações são secas e áridas, substantivas.

 

São Bernardo é um dos grandes filmes e adaptações do cinema nacional. Graciliano faleceu em 1953 e não assistiu ao seu romance adaptado para o cinema. Talvez ficasse orgulhoso pelo respeito de um cineasta às palavras de um grande autor, sobretudo quando surge algo inesperado, não escrito. As últimas sequencias do filme são imagens documentais dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, seus rostos, muitos filhos, enxadas, moscas, casas de pau a pique e seus cantos de trabalho. Suas vozes em coro e seu corpos firmes, magros, vivos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

​​​​​​São Bernardo

Leon Hirszman - 1973 - 113 min.

Sinopse: Paulo Honório, que perambula pelo sertão a negociar com redes, gado, imagens, rosários e miudezas, arranca a fazenda S. Bernardo das mãos de seu inepto proprietário e futuro empregado Luís Padilha. Nessa trajetória, aprende a encaixar - como coisas - os homens, cada um em seu lugar. Porém, ao casar-se com Madalena, de quem deseja a posse total, tudo se estilhaça, pois sua dificuldade em racionalizar o amor colocará em cheque sua visão de mundo.

 

 

          

                         por

              Gabriel Araujo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

​Em busca do real?

 

A ficção e a realidade não são como óleo e a água: elas coexistem. Saramago usou originalmente a metáfora para falar sobre a alegria e a tristeza. A mescla posta nesses termos distintos é colocada como desafio pelo novo filme de Eliane Caffé, Era o Hotel Cambridge. Nele, o espaço representado de um antigo hotel ocupado por sem-teto e refugiados torna ainda mais sombria a indistinção entre o real e o irreal.

 

Inicialmente surge a pergunta: é documentário? O que vemos pertence ao mundo de dentro da tela ou de fora? Aos poucos o questionamento perde importância e se dilui na sequência de imagens que vão nos conduzindo do mundaréu de vivências ocultas da cidade-mundo São Paulo para o interior do edifício, onde o encenado e o vivido ganham uma luz indissociável. Por uma rede de encanações e fios somos enclausurados nos cômodos abandonados em um submundo do absurdo, palco de extrema realidade.

Ambientado numa atmosfera babélica, os excluídos das cidades brasileiras dividem a cena com os excluídos do mundo: são os refugiados, que fogem das guerras geradas por uma geopolítica insana e destrutiva. Tal como dois prédios não ocupam o mesmo lugar na cidade, seria possível dois tipos de excluídos reivindicarem a mesma ocupação?

Brasileiros, palestinos, congoleses: a pobreza, baseada em um mundo de competição, faz isolar; destrói a possibilidade de construir o bem comum, cria individualidades vulneráveis. No entanto, é dessa vulnerabilidade que surge a luta em organizar o coletivo. Carmem, personagem de si mesma, sintetiza o lema dessa busca: somos todos refugiados!

As ocupações urbanas se proliferaram na medida em que as cidades se tornaram cada vez mais desmedidas, irracionais e excludentes. Na lógica da cidade-mercadoria, o horizonte vai sendo cortado por grandes edifícios, criam vazios verticais para fugir do vazio que criaram nas ruas. É uma geografia urbana produzida para o lucro de alguns.

 

O mundo, que não anda bem, exibe seus sintomas nas cidades: a profunda desigualdade de renda, a intolerância, a falta de co-presença, o medo. As vivências que cotidianamente ocupam cenários de não-lugares tem em Era o Hotel Cambridge seu destaque e o que ostentam é a própria realidade, o absurdo.

 

Confuso como atravessar uma rua na hora do rush, o filme é entrecortado, onde vozes polifônicas se esbarram ao tempo todo, num coro único; confusão de vozes, conduzindo vidas e personagens sólidos ante paredes mágicas. O teto de amanhã não se garante para esses, só a luta.E os sonhos. Se o que era sonho, vira terra; o que era hotel, vira ocupação: ocupar a cidade é o futuro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Era o Hotel Cambridge

Eliane Caffé - 2017 - 99 min.

Sinopse: A trajetória de refugiados recém-chegados ao Brasil que, junto com trabalhadores sem-teto, ocupam um velho edifício abandonado no centro de São Paulo. Em meio à tensão diária da ameaça do despejo, revelam-se dramas, situações cômicas e diferentes visões de mundo.​

 

 

   

2.

Era o Hotel Cambridge - domingo dia 29.10 às 19 horas - ENTRADA E LIVRE - TRIBUNA LIVRE CULTURAL

Âncora 1
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